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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Feijão Maravilha




Aprendi a fazer feijão, alimento corriqueiro dos lares brasileiros. Pode parecer tolice aprender algo assim, mas fazer feijão foi um desafio para mim. Existe um ponto de equilíbrio entre seus ingredientes e o tempo de cozimento que eu não acertava. Ou ficava mole demais, ou duro demais, ou o tempero não chegava ao ponto que gostaria. Um exercício, várias tentativas, muitos erros e o tempo. Aprender exige isso: tempo, maturação, humildade. Pesquisava, procurava saber, entender. Houve uma época em que me dei por vencida. Então, preferi deixar outros fazerem. Cheguei a pensar que esse prato não era pra mim. Ficou o incômodo e a frustração, guardei os dois em uma gaveta e os esqueci. E o que me fez prepará-lo novamente? Deve estar se perguntando. O que nos move com força? Filho. Malu criou resistência ao feijão de minha colaboradora, e como seu gosto é restrito, lá foi a mãe tentar. Vendo e revendo vídeos no YouTube e formas de fazer de alguns parentes, o feijão ganhou sabor e vida. A receita foi anotada e incorporada. Para mim, o melhor foi o tempo de maturação interno. Ele é a chave de conseguir, de aprender a ouvir o outro e a mim. Abrir-se  ao aprendizado. Isso não aconteceu apenas com o feijão, afetou a minha escrita, os textos que componho. Tenho prazer de que outros leiam meu texto quando construo, gosto de conversar e trocar com colegas da escrita. Nem sempre foi assim. Desengavetar escritos não era fácil. Eles ficaram guardados um bom tempo, até eu libertar o meu lado escritor, que precisou ser maturado. Precisei me abrir à escrita e ao aprendizado do seu fazer. Faço esse paralelo com aprender feijão. O corpo e a mente precisam incorporar uma nova tarefa e isso demanda tempo, foco, disciplina e vontade. Maturo esse fazer diariamente, construindo hábito. Nisso tive ajuda inesperada de minha filha, um aplicativo que ajuda a focar. Com um colega escritor, aprendi que preciso fazer isso durante 21 dias para incorporar a prática. Realmente, se não faço naquele horário já sinto falta. Tem maior prazer para o escritor do que falar sobre literatura? Ano passado entrei para grupo de pesquisa de Literatura e Sarau. Veja só como meu feijão literário tomou corpo. Daria até um samba. Caberia o título de aprendiz.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

De volta pra escola, mamãe!

 







Tive os primeiros anos de alfabetização numa casa que funcionava como escola pública no centro de minha cidade natal. Uma casa de paredes altas, piso de madeira, um porão que alimentava nossas fantasias e um quintal imenso, com tamarineiro e mangueiras. Tínhamos acesso ao quintal por uma escada, quase um corredor para um mundo mágico de brincadeiras.  Os encontros nesse local foram as melhores memórias de minha vida escolar. Eu tinha uma bolsinha recheada de bolas de gude, preparada para qualquer oportunidade de brincar. Só trocava as bolinhas pela bola de futebol. Na minha infância não houve limites em relação a como uma menina podia se divertir. Todo começo de ano letivo lembro-me disso. Agora, neste mês de fevereiro, mês de retorno às aulas em Salvador, esse encontro tão esperado para as crianças contemporâneas foi substituído por uma realidade distópica, cheia de protocolos, orientações e medidas. Além disso,  enfrentaram a retirada de especialistas para as séries iniciais, como de Artes e Educação Física. Acredito que isso se deve aos  cortes financeiros que a educação vem sofrendo há alguns anos. Quase dois anos de pandemia e nos preparamos pouco, a sociedade não repensou a alfabetização dessas crianças, o financiamento diminuiu.

 Em países como Noruega e Dinamarca, a Educação Infantil tem um projeto especial, pois é uma série crucial para o desenvolvimento adequado das crianças. O Brasil tem excelentes pensadores na área da educação, poderíamos ter um grande projeto, mas não temos. E isso não  é algo restrito à nossa cidade. O especialista em literatura infantil e Presidente do Instituto de Leitura Quindim escreveu artigo recente sobre como a retirada de recursos afetou as crianças na cidade de Caxias do Sul no Rio Grande do Sul. 

Há mais de dois mil anos o filósofo Platão estabelecia os princípios para o bom desenvolvimento do aluno na educação elementar, entre eles estava a importância da Arte e da Educação para promover o equilíbrio na vida do cidadão romano, para conter a barbárie. Vivemos em um país onde a violência está na sua formação estrutural. Basta estudar a nossa história para verificar isso. Quando vejo ondas de violência extremas, como linchamentos, penso que o trabalho de Artes e principalmente de Educação Física pode favorecer  e impactar de maneira significativa a formação dos jovens, e que Platão tinha razão. Uma base forte será a diferença desse jovem, são memórias corporais e mentais que o acompanharão por toda a vida. Alguém pode perguntar: “Mas você teve essas aulas com especialistas?”. Não, mas tive um tempo de recreio impensável nos dias atuais, espaço para jogar na escola e fora dela, já que meu pai era jogador profissional e incentivava muito o esporte, e nasci com vocação para arte e apoio familiar, o que muitos desses jovens não têm e não terão. O ambiente escolar pode oferecer isso. Arte e atividade física significam saúde mental, equilíbrio.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 24 de outubro de 2021

Infâncias Sequestradas



Ele caminhava silencioso pelo corredor da padaria, menino de uns dez anos, cabisbaixo, roupa puída, mas limpa. 

Senhora, pode ajudar a alimentar minha irmã? 

Quase não entendi a pergunta.

Preciso de leite. ̶ era pedido-sussurro. Meneei a cabeça em um quase “sim”. Continuei as compras, depois  conversei com meu marido sobre o pedido. Ele foi pegar uma caixa de leite. Estávamos no caixa, apontei para o leite e olhei para o menino, angustiado pegou um saco de leite em pó e mostrou para mim.

Pode ser esse?  ̶  perguntou. Meu marido acenou que sim. A caixa reclamou sobre ele ainda receber e ficar escolhendo o que ganhar.

  Tem muita gente com fome hoje em dia   Se a irmã for pequena, melhor um leite que dilua.  

Arde meu estomago num sentimento deslocado. Despedi-me do menino na porta, uma outra senhora o ajudou com pão e ovos. Quase feliz desce a rua.

Vivemos  força de guerra, criança!  Segue invisível, escolha sombras e descansa, o sol arderá até tarde.  Versos compõe nossos dias, A cruzada das crianças de Brechet diz presente.  Meninos brincam de bola as margens de rios-esgotos, empinam pipas nos aterros e viajam no faz de contas nos caminhos das feiras, enquanto empurram os carros-de-mão.

Vivemos força de guerra, criança! 


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 29 de agosto de 2021

Bebês de um Mundo Novo

    







Embaracei esta manhã em um pé-bebê de Araçá. Eu estava em seu caminho, distraída fui envolvida por seus galhos,  pedi desculpas tocando-lhe os frutos. Suspirei e lembrei-me de outros bebês, os da minha família, nasceram nesses tempos pandêmicos. Eles habitam seus pequenos núcleos nesse distanciamento necessário, vejo-os crescer pelas telas tecnológicas, os parabéns cantamos em encontros virtuais. De minha casa, cercada por meus gatos, plantas, livros e minha família, vou diluindo essa saudade. Às vezes, encontro-os de longe, sem tocá-los. Na rapidez da aprendizagem desses pequenos seres, eles respondem e reconhecem nossas faces.  Construo para eles versos e livros artesanais, leio as histórias, mostro as imagens e vamos interagindo. Viajo na irrealidade do cotidiano, citando Umberto Eco. Assim, esta semana, abri uma tela para uma escola em Ipiaú, no Sudoeste da Bahia, e, virtualmente, fui até uma sala de aula de crianças da terceira série. Eles em fila indiana, ansiosos pela presença de autores, perguntavam sobre  nosso livro. Queriam saber sobre a escolha do nome Leo e Lua, sobre minha origem na cidade vizinha, Jequié, sobre as ilustrações, sobre a quantidade de palavras no livro. Respondi uma a uma. A representação do céu e da lua do sertão, as quatrocentas palavras do livro; conversamos sobre Jequié e descobri vários pequenos conterrâneos. Um apresentou seu livro sobre elementares com seus desenhos, e as explicações confidenciaram desejos, como ter uma caixa de lápis com cinquenta cores. Surpreenderam-me com perguntas sobre os personagens não ter cores, emocionaram-me. Vejo-os adaptados a conversar por tela e eu ainda em adaptação. Como são incríveis os seres jovens na sua predisposição a  reorganizar seu modo de dança no mundo. Aquele pé de Araçá se adaptou crescendo num espaço onde carros estão estacionados e consegue dar frutos. Sim, eles estavam de máscaras, distanciados, com o olhar primeiro, o olhar ao novo de criança mantido, a empolgação, a emoção no encontro. A criança, sempre um poeta em sua natureza, nos ensinando tanto. Quero esse olhar primevo da infância, essa disposição à descoberta, ao aprendizado, ao descortinar esse novo mundo.


Ana Paula Mira

Escritora


sábado, 21 de agosto de 2021

Meninas, Gatos e Acesso à Educação

 




Era um livro pequeno, preto, poucas letras douradas. O autor, desconhecido para meus treze anos de vida. Edgar Alan Poe. Nunca esqueci um dos contos: O gato. Eu não me importava em enfrentar o sol árido das tardes de Jequié  para buscar na vizinha de bairro os livros. O mistério arquitetado naquelas páginas ganhou minha curiosidade. Aquele autor dialogava comigo. Revivi a sensação dessa primeira leitura conversando com meu médico. O gato e sua narrativa, os acontecimentos, o sufocamento do personagem, o destino do animal e... da mulher. Naquela história eu defendia o felino. Seu encanto, seu silêncio, seu mistério natural fora usado com maestria pelo escritor. Na idade média, o Papa Gregório XI estabeleceu que os felinos eram companheiros de bruxas, incluindo-os na lista de hereges. Depois de muitos serem exterminados em fogueiras da Santa Inquisição, houve um pico na população de roedores, trazendo a peste Negra. O quanto as lendas sobre os gatos pretos companheiros de feiticeiras trazem para esse animal e a mulher um destino de sofrimento nestes dias?  Conspirações e histórias falsas não são prerrogativas de nosso tempo. Na minha adolescência não percebia essas nuances sobre as mitologias; o autor conversava comigo e isso bastava.  Nesse agosto, mês das superstições, caiu sobre nós um treze numa sexta-feira.  Quando releio esse conto, reflito. Gatos e mulheres. Na história de Edgar Allan Poe tanto o gato quanto a mulher têm um destino onde partilham sofrimentos. As areias do deserto nos trazem notícias, mulheres perdem o direito de ir e vir como no conto, começam a serem emparedadas em sua própria casa. Afeganistão, tão distante. Será? Como andam as meninas sem condições financeiras em nosso país?  No nosso semiárido, além do calor, elas lutam para irem à escola nos dias de seus ciclos; têm muitas faltas por não terem recurso para comprar absorventes.  Como às vezes conseguem ir? Utilizam objetos como tecidos ou até papelão. Como poderão, no futuro, lembrar dos seus autores preferidos se não possuem o básico para estudar? Como poderíamos dizer que a elas é permitido o direito de ir e vir? Estariam também emparedadas? Uma lei de proteção sobre fornecimento de absorventes não consegue ser discutida no plenário da Câmara.  Medo da palavra menstruar, desse mistério de ser mulher ou puro machismo. Gatos pretos e mulheres caminham juntos na mesma sombra por esse planeta chamado Terra.


Ana Paula Mira, escritora. 

Instagram: @ana.paula.mira

sábado, 7 de agosto de 2021

Papel Tem Cheiro de Infância

 






Nessa manhã, minha mesa comporta diversos papéis de  várias gramaturas e cores, arrumados em cadernos pautados, de esboço, ou soltos como os destinados à pintura. Observo os coloridos para as dobraduras, deles  ouço as minhas memórias: a campainha de minha escola infantil, minhas mãos de criança tateando a sacola em busca de um copo que não encontra. Vejo-me pegando uma folha de caderno, dobrando-a e dela obtendo o utensílio desejado. Corro ao bebedouro, fico salva da sede.  O papel sempre foi para mim algo mágico, onde as imagens podiam ser manifestadas  como letras ou linhas com ou sem formas. Era de onde extraía os barcos de papel que flutuavam nas correntes e nas barragens que produzíamos após uma chuva. Minhas irmãs e eu. Lembro-me de uma grande caixa de papel que veio embalando nossa geladeira. Minha mãe nos propôs transformá-la em uma casa, brincamos dias; alguém trouxe uma menor, minha mãe a acoplou à outra e nossa casa ganhou cômodo. Dias alegres aqueles com as caixas de papelão.

Minha tia-avó, Tidinha,  costumava, quando jovem, usar moldes vazados de papel para pintar. Eu costumava pendurar na borda da mesa e ver seus pincéis preenchendo os vazios do molde, fazendo surgir nos tecidos diversos desenhos. Quando suas tintas estavam perto do fim ela me presenteava com elas. Que felicidade para mim! Eu aproveitava todos os espaços e papéis possíveis e pintava meu mundo. Na minha adolescência  começamos a fabricar nosso próprio papel, a reaproveitar as sobras e criar. Gostaria de voltar a essa atividade. Recebíamos cartas de queridos naqueles papéis reciclados, resgatávamos naquilo milênios de aprendizados, impregnados dos primeiros descobridores, chineses, italianos entre tantos outros.

 

Quando minha filha era pequena, sempre havia em minha bolsa caderno e giz cera. Quando íamos a um ambiente adulto, ela não ficava só, eu me debruçava com ela criando personagens, realizando teatro com os dedos, inventando histórias, colorindo. Alguns adultos acabavam aderindo ao movimento, deixando vir sua criança de outrora. Foi assim que comecei aos poucos a voltar a desenhar e a escrever para a infância. Um exercício parecido com o de vários outros escritores. Um dia ouvi um colega dizer que a diferença entre um artista e outras pessoas é que todos começam uma arte na infância, os que não param é que se tornam artistas. O processo da arte é contínuo, o realizar é o que importa. O produto? Uma consequência. Eu continuo a brincar com papéis, a sentir suas texturas e preenchê-los com pensamentos, ideias, palavras, cores. Gosto também de cortá-los e dar outros formatos, ou dobrá-los e transformá-los em livros artesanais, ou de criar os moldes de um livro.  Assim espalho o prazer pelo objeto para outras pessoas. 


Ana Paula Mira, escritora.

Instagram: @ana.paula.mira






domingo, 1 de agosto de 2021

Cápsulas do Tempo




A louça branca reflete as cores da paleta de aquarela que pintei esta semana:  azul, ocre, verde e nanquim. O objeto reflete uma pequena memória. Penso que os objetos são baús de conjuntos de história. Recordo que a ideia de misturar pigmentos e água para criar desenhos surgiu no Egito, mas suas características ganharam forma há dois mil anos na China, foram abraçadas pelo Japão, Índia, Europa e  chegaram até nós pelos portugueses.  As obras de arte são cápsulas do tempo que contam as histórias da humanidade: gravuras, quadros, estátuas, painéis, cerâmicas, livros, esculturas, cinema. Melancólica, lembro-me do fogo que abraçou a cinemateca esta semana, não o fogo da criação, mas da destruição de nossa cultura. Registros de pensamentos, costumes, ideias, imagens, se foram. Temos agora nossa  biblioteca de Alexandria, uma biblioteca de filmes queimados. Gostaria que fosse o fogo que transforma,  que preservou as placas cuneiformes feitas de argila da Mesopotâmia, descobertas no século XIX, e que nos revelou o mito de origem Sumério de Gilgamesh. Nossa memória ainda está sendo consumida de outra forma pela epidemia. Tantos artistas, tantos saberes se foram precocemente. Nas Palavras de Jade, trouxe essa inquietação sobre a preservação da memória. A personagem ganhou um baú de seu avô, onde guarda sua coleção de palavras. Um dia, Jade perde essas palavras, fica desolada. Hoje, os brasileiros que sabem a importância da cultura estão como essa personagem, sentindo-se órfãos. Jade resolveu seu problema, a história teve um final feliz. Gostaria de ser o autor da realidade e fazer o tempo voltar, criar seres que cuidassem da arte como uma personagem apaixonada por seu baú. Mas eu não sou o criador dessa história. Olho minhas tintas, objetos de arte, e me pergunto: o que ficará para o futuro? O que restará de nossa arte, de nossas memórias?

 ____________________________ ______________________   Ana Paula Mira, escritora.


#anapaulamiraautora @ana.paula.mira