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sábado, 27 de fevereiro de 2021

Biblioteca Viva

 





Biblioteca Viva

No caminho de casa encontrei um portão, ao entrar nele havia um sítio. Lá, uma profusão de plantas e, entre elas, um conhecedor da flora. Dentro desse homem descobri um mundo. Seu nome era Pablo. Apesar do nome espanhol, sua fala tinha prosa de sertão baiano. Nos olhos, alegria de menino ao revelar seu universo natural. Mantive ouvidos abertos e aprendi sobre cada nome de planta, o tamanho que alcançavam, as afinidades, suas naturezas, das solares às apegadas à sombra. Entrei num tempo mítico, desacelerei diante daquele conhecimento oral. Ouvi histórias passadas de uma geração a outra. Pensei nos descendentes daquele homem. Passariam eles à frente esse conhecimento? Manteriam essas memórias vivas?

Lembrei do livro Cem Anos de Solidão, no qual a peste da insônia invadiu um vilarejo e o que parecia interessante, inicialmente, resultou na perda dessas memórias.  Na história, o personagem Aureliano resolve anotar os nomes dos objetos de seu laboratório em papéis e decide pregá-los nas peças. “Não lhe ocorreu que aquela fosse a primeira manifestação do esquecimento”. Ensina o método também ao seu pai, José Arcadio Buendía, e aos demais moradores, mas aos poucos eles também se esquecem por que colocaram papéis nos  objetos e nos móveis. Gabriel García Márquez homenageia assim a própria tarefa da escrita, a perpetuação da memória, deixando-nos a reflexão de que podemos perder o porquê de os livros existirem se não mantivermos o exercício de lê-los. Um livro fechado é um universo não descoberto. Quando parei para ouvir Pablo, permiti que ele se abrisse como um homem-livro. 

Século passado, inspirados certamente por folcloristas e pesquisadores em outros países, Silvio Romero, Câmara Cascudo, entre outros, mapearam o Brasil em busca desses homens e mulheres-livros, coletaram muitos contos orais e os transpuseram para texto escrito. O trabalho continua na atualidade por pesquisadores como Marco Haurélio. A busca pela permanência da memória é incessante. Agora, enfrentamos fora da ficção uma peste chamada “coronavírus”, que ameaça com furor a nossa memória, colhendo de maneira voraz nosso conhecimento ancestral, tirando a respiração e o oxigênio nutridor dos cérebros idosos do mundo. Uma perda incalculável para a história da humanidade. Os escritores, acredito, se veem inundados com o desejo de registrar seus ensaios, contos, poesias. Porém,  o que acontecerá se o mundo desaprender a abrir o livro, a virar a página, a deixar de  produzir literatura, a registrar a arte no papel? Se os conhecedores da natureza e os narradores orais desaparecerem? 

 Texto de Ana Paula Mira

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

sábado, 20 de fevereiro de 2021

O Carnaval , O Poeta e o Passarinho.









Era terça de carnaval, e eu vi, eu juro! O silêncio pulava na Praça do Poeta. E se vendo sozinho, expandiu-se e preencheu tudo. O Poeta observava aquele vazio. Se voltasse  a vida, podia quem sabe, encher o espaço de palavras. Assim, entre um pulo e outro do silêncio, ouviríamos vozes alegres cantar. Eu podia sim colocar, um grito de viva, soprar uma palavra de serpentina, colocar purpurinas, refletiu a estátua. Faria versos e a música tomaria conta da praça. Porém, por mais que tenta-se, o poeta não mexia um dedo, o corpo preso no metal. Um passarinho sentou no ombro da estátua e cantou: o carnaval saiu em férias e não sabe se volta. O Poeta queria o barulho de volta, a multidão dançando, aquele empurra, empurra e os trios passando. E o passarinho ainda completou - o silêncio quer tudo para ele, seu teatro também emudeceu. Nem seus versos ecoam mais.  O Poeta estava revoltado com essa notícia e não adiantava, não podia se mexer. O passarinho estava na verdade bem contente, era aliado do silêncio, agora o povo de Salvador podia ouvir melhor sua cantoria, confessou. 
      E conto essa história para confessar também que se as pessoas ficam em casa, o silêncio me permite escrever mais. Dessa pandemia procuro retirar os ganhos e não somente as perdas que tive. Aproveitar a companhia de minha filha é uma delas. A insatisfação leva a  vazios, a procurar culpados, a revolta. Existe uma barreira de incertezas atravessando o mundo e aprendi que viver um segundo após o outro, nesse momento, economiza energia para que eu não me esgote. Há um caminho longo a percorrer. Não sabemos se um dia o carnaval voltará, se as escolas como conhecemos voltarão, se as festas de largo também. Precisamos descobrir outras formas de nos entreter nessa viagem. Somos tão criativos, precisamos sair da inércia, não procurando o passado, esse, não existe mais. Criemos novas formas, vivendo cada dia como único. Virar a página, criar palavras novas, preencher o silêncio e fazer uma canção mais humana. 


O Sal da Terra- Beto Guedes



sábado, 13 de fevereiro de 2021

A Persistência da Memória








Chega até meus ouvidos notícia triste, enquanto separo para minha sogra livros que emprestarei mais tarde. As vacinas não chegaram na mesma velocidade que os números de contaminados por covid aumentaram. Suspiro, segurando um livro de Jorge Luís Borges em minha mão, o livro com o título História Universal da Infância e outras Histórias. Penso no realismo mágico e na distopia em que vivemos. Sinto um sufoco no peito, àquele que senti quando minha avó mudou-se para Ilhéus. A realidade ganha tons de ficção. A epidemia vista em filmes, lida em livros, assombra fora dos sonhos. Surrealismo dos quadros de Salvador Dalí, a falta de oxigênio, ameaça a humanidade. As crianças seguem assistindo aulas por telas, como nos filmes de ficção científica, a era da informática foi acelerada pela pandemia. Mas a interpretação dos textos, não. Não pela maioria. As notícias chegam por redes sociais, e as falsas verdades se instalam, sem a menor pesquisa. Os especialistas e a ciência é negada. 
Separo outro livro, A metamorfose de Kafka. Estaríamos virando insetos? Incomodamos tanto a natureza, que estamos sendo expurgados? Essa, e tantas teorias rondam-nos, nada comprovado. Buscamos uma resposta, e nos contentamos muitas vezes com teorias de conspirações. 
Passo a mão pelo livro e penso que somos feitos afinal de histórias e cada um escolhe sua narrativa. Então, qual será a história que contaremos no futuro? Qual será a história universal da infância na pandemia neste século? Algum autor conseguirá expressar? 
Será que minha sogra  já leu Retrato de um Artista quando Jovem de James Joyce? Acho por bem levar esse romance. Lembro que preciso  pedir que deixe os livros em quarentena. A avó de minha filha ainda não foi vacinada.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

Foto: Obra Salvador Dalí, "A Persistência da Memória" (1934)

sábado, 6 de fevereiro de 2021



Se não for feliz em casa, onde mais posso ser? Despertei com essa questão hoje. Coloquei uma música suave, fui à cozinha, preparei meu café. Gosto de beber sempre na mesma xícara. A porcelana veio da fundação de Frida Kahlo. Lembrei da artista e seu caminho. Ela evidenciou em sua arte sua biografia, sua etnia, seu amor ao México. Estaria ela exibindo, ou vivendo sua casa? Era mais feliz ao fazê-lo? 

Terminei meu café, e passei lentamente a lavar os utensílios, ouço o som da água misturar-se as notas musicais. Meus pensamentos ficaram suspensos. O prazer da água, o barulho da louça. Aos poucos guardei os vasilhames, organizei. Meus pensamentos organizam-se junto. Respirei nesse movimento, devagar. Lembrei de Frida,  li que ela sentia muitas dores por causa do acidente que teve na juventude. Será que ela tinha algum prazer em arrumar suas gavetas, será que conseguia fazer algo tão corriqueiro e ao mesmo tempo tão profundo? Será que se organizava com os pincéis que movia? Não vi nada escrito nas biografias que li a seu respeito. 

A música me aterra. Estou no presente. Guardo sobre a bancada da pia, um pequeno azulejo de Pernambuco, uma xilogravura retrata o sertão. A figura leva-me a infância, a Jequié. Lembro de Seu Sergio, um vizinho querido, e seu atelier, onde tratava o couro, e fazia as selas, os chapéus, as sandálias e todos os pertences do boiadeiro. Fecho os olhos e sinto o cheiro daquele ambiente. Ganhava sempre restos de couro curtido e tentava fazer, sem sucesso,  sandálias. Como Frida, essa cultura que faz parte de minha infância, retorna na minha escrita, em minha arte. Tudo isso faz parte de minha casa, de minha personalidade, do meu país, sinto-me brasileira. Inquieta-me à busca de minha raízes. Apenas favorecer um ramo? Não sou somente europeia, ou africana, ou indígena, sou a mistura de todas elas, sou a história de mais quinhentos anos de um país, sou várias anas e várias marias. Como muitas mulheres que habitam esse país. Muitas casas, diversos elementos. Grãos de diferentes tons , formando uma faixa única de areia, numa casa chamada Brasil. Terminei de arrumar a cozinha, fiz mais um café e bebi.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira