Páginas

domingo, 25 de julho de 2021

Meus Animais e eu






Quase trouxe um cachorrinho para casa. Meu marido, antes mesmo de dar bom-dia falou. Ele havia saído antes de eu acordar para ir à padaria comprar o rotineiro. No retorno encontrou o animal perdido. Era preto e tinha olhos de quem conhecia o conforto de uma casa. Logo mais, dois transeuntes se juntaram preocupados com o destino do canino. Certeza de que tinha dono, logo se via pelo jeito perdido que se comportava. Começaram a discutir seu destino; um dono de barraca interveio, garantindo que já o tinha visto antes, que ele costumava fugir e que iria retornar ao seu lar. Convencido, meu marido retornou para casa, mas trouxe o cachorrinho no sentimento, dessa vez. Temos dois gatos, o primeiro, Osho, foi adotado por ele. Um dia, tarde da noite, ele  deu uma pausa na pintura que fazia e foi olhar a rede social. Gatinhos ainda com resto de cordão umbilical foram encontrados abandonados em uma rua, e uma amiga sua pedia ajuda. Ele se comoveu com um branco e preto e me fez surpresa. E assim O sho chegou a nossas vidas. Nossa filha era pequena, e ele, filhote, exigia atenção. Início  tumultuado. Osho ciumava muito dela e costumava arranhá-la quando estava em meu colo. Eu perdia a paciência e brigava com ele, que corria para proteção do meu marido. Ele encheu a nossa vida descobrindo o mundo, brincando. A infância do gato passa muito rápido, ainda bem. Aos três anos ele começou a mostrar sinais de estresse quando ficávamos fora de casa por muito tempo. Nessa época encontrei um gato abandonado em uma caixa nas imediações do meu trabalho, deveria ter um mês, e o trouxe como presente para minha filha, na ocasião com uns sete anos. E assim Spike se tornou irmão de Osho. Chegou pequeno, o que facilitou o convívio. Osho se comportava como o irmão mais velho. Spike, com uma personalidade mais dominante, sempre exigiu atenção e carinho de meu companheiro nos momentos de escrita e leitura. Ele tem predileção por subir no meu material de trabalho e quando quer massagem no pescoço senta sobre meu teclado. Enquanto não cedo ao seu desejo, se recusa a sair. Nesta pandemia muitos escolheram ter um animal de estimação. Quem escolhe esse caminho deve pesquisar bastante. Um animal não é um objeto que se devolve, eles constroem vínculos e confiança. Fico pensando no cachorrinho que meu marido encontrou. Será que achou seu dono? Será que foi abandonado? Antes da pandemia, o abandono de animais era um hábito comum. Amigos que ajudam abrigos relatam que essa prática aumentou muito. Casos de animais que perderam seus donos por morte ou porque estes não tiveram mais condições de arcar com as despesas. Spike se aconchega a mim, mostra a barriga, faço cócegas, ele ronrona. Desce e anda em direção ao corredor, mia novamente. Entendi, você quer comida. Já vou. Ter gato, e ter dono.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira



sábado, 17 de julho de 2021

O Nascer de um Livro






Velas espalhadas pela mesa iluminavam as saudades. Pela claridade amarela, os olhos de uma tocadora avistaram o violão na parede. O objeto deixou de ser enfeite, a moça retirou dele acordes. A música tomou conta da sala, vozes foram despertadas e as pessoas presentes cantaram o sertão. A escritora folheava o livro
Sertanilia, de Elomar Figueira. A música também era do mesmo autor. Ela cantou os versos, enquanto se lembrava de sua infância: as brincadeiras na mata branca, que provocavam arranhões, a colhida dos tomates silvestres pra fazer comidinhas. O cascalho, as pedras empilhadas, criavam mundos, cidades. Os umbuzeiros no verão, onde subia e descobria o mundo, as chuvas do período que traziam a lama, os córregos, a alegria. Mais tarde, em casa, a escritora trouxe esse momento mítico para o companheiro ilustrador. Eles partilharam suas lembranças, sua memória crianceira e criaram. Ela rabiscou no seu caderno as primeiras frases. Ele escolheu a prancheta e escreveu suas lembranças em desenhos. Todos os dias, ouviam Elomar e Cordel do Fogo Encantado. A casa encheu-se de sons de mata, periquitos, sabiás, curiós, azulão. Por mais curioso que fosse, encontraram na cidade grande um pé de araçá florido e acompanharam a transformação das flores em frutos. Fizeram questão de esperar eles amadurecerem, assim como amadureciam suas ideais criativas e provaram do fruto. Tiveram, então, a certeza: iria ser um livro. Um livro para crianças. Leo e Lua era gerado. Lembraram-se de que na infância, um dia, os meninos e meninas deixaram de ficar misturados. Os meninos só viviam pendurados nas árvores, correndo nos campos; as meninas seguiam colhendo os frutos, fazendo comidinhas e ganhando vestidos que não podiam amassar. No livro, eles se encontrariam e seria a chuva quem os uniria nas brincadeiras infantis. E provariam juntos o araçá e criariam juntos coisas incríveis. O sol e a lua se encontrariam como iguais. Chamaram uma designer que com seu toque mágico organizou esse encontro. 

Um violão, um cantador entoou os acordes do sertão trazendo a luz de Leo e Lua, enfim, para o mundo. Nesse dia havia gente de todo canto do Brasil e gente além dessas fronteiras. A escritora chorou, o ilustrador se emocionou. 

Na casa, tocou a campainha, o som estridente tomou conta do local. Era o carteiro, entregou um envelope à mãe, que passou ao marido, que passou à avó, que entregou à menina, que não segurou o grito. O envelope foi rasgado, depois o embrulho, e ela encontrou o livro.


- É meu?

- Sim, é seu.

- E o que está escrito, vó? Lê pra mim.

- Leo e Lua, querida.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 11 de julho de 2021

Mudaram as Estações e Nada Mudou

 



Vento, chuvas, calçadas úmidas, nuvens turvas, inverno. Mudanças sopram sinais. Minhas gavetas pedem vazios. Nessa nova estação sinto esse pedido. Período de desapegos. Numa sociedade de acúmulos, confesso, tenho meus excessos. Roupas, acessórios, objetos e histórias que resisto em liberar. Igual a outros humanos, envergonho em dizer. Construímos espaços, inventamos objetos necessários e os criamos. Preenchemos nossos vazios cavando o solo, abrimos buracos, extorquimos metais, exploramos áreas, devastamos florestas. Do resto não consumido, formamos entulhos, sistemas de esgotos, lagos de excrementos, bacias tóxicas. Sem lar, sem alimentos, os animais silvestres se aproximam de nós e trazem doenças desconhecidas. Caos instalado. Observo minha cômoda: madeira, dentro dela tecidos derivados de petróleo, brincos de metais. Mineração. Lembro-me do livro Ferreiros e Alquimistas de Mircea Eliade. A descoberta do ferro após as tempestades, sua forja e a invenção de armas de guerra. O desejo de dominação. Queríamos ser especiais, sentar diante da fogueira e contar histórias de conquistas. Objeto, poder e domínio da morte. Quem dominava o ferro viveria mais tempo, se aproximava dos deuses e se sentia deus. Será que esse sentimento habita ainda em nós? Ao possuirmos coisas  nos sentimentos especiais, melhores que os outros animais que habitam o planeta? Parece que perdemos essa conexão com a terra de modo contínuo durante milênios. Sem empatia, nos perdemos em nossas histórias, e o poder de criar histórias é uma das coisas que nos diferencia dos outros mamíferos. Deveríamos ter nos tornado melhores. Agora não sabemos esvaziar gavetas, e se esvaziamos queremos preencher com algo. Imprensamos nossas florestas e não sabemos como diminuir nossos avanços. Sufocamos e somos sufocados, não respiramos. Matamos nossos mitos, nossas lendas, nossos povos originais, queremos sempre novas histórias, novos objetos. Enfim, esvazio as gavetas, mas ainda não encontro respostas.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

sábado, 3 de julho de 2021





Pego a caixa de madeira. Ela fica no fundo da gaveta em minha cabeceira, descansa sem uso há quase dois anos. Às vezes a abro e olho seu interno. Passeio com meus dedos pelas fitas coloridas de cetim, pelas linhas de diversas cores, pelas flores para aplicações, pelos restos de chita. Esse mês de junho ela permanece sem ser usada. Desde que tive minha filha, uso essa caixa para armazenar as fitas e material de costura. Ela contém afeto das festas juninas desde que minha filha tinha um ano. Guardo os registros dos vários laços e enfeites que fiz para lhe trazer colorido nas festas de São João. Assim, passo para outra geração o amor por nossa cultura. Na adolescência que inicia os gostos mudam. Por um tempo, acredito que poderá até negar esse costume, mas os sons, as cantigas, um dia serão âncora de sentimentos amorosos. As festas juninas que fervem por todo o nosso Nordeste, aquecendo o frio de inverno e celebrando seu início, têm nascimento muito antigo e um tanto incerto. Têm reminiscências ibéricas, lembram as queimas das fogueiras de Beltane pelos povos celtas, bebem em fontes galesas, mas podem ter também relações com a Índia. Em cada cidade desse enorme sertão, a festa foi ganhando aspectos próprios, rodas de forró, quadrilhas, padrinhos e madrinhas de fogueira, casamentos matutos, pau de sebo, quebra-pote, cabra-cega, ritmos  e danças como xaxado, xote, baião. Fogos coloridos, guerra de espada. Alguns costumes hoje proibidos para evitar desastres ambientais, como os balões, são preservados nas músicas. A comida junina ganhou espaço por todo território nacional com a canjica, a pamonha, o amendoim cozido, a paçoca, o doce de jenipapo, os diversos licores e o quentão. A tradição é marcada pelas roupas feitas de chita, as fitas enfeitando os cabelos, os chapéus de palha e os lenços. Uma cultura que brinca com todos os nossos sentidos: visual, auditivo, sinestésico. Memórias afetivas de muitas infâncias. Ouço então estrofes conhecidas, é o Luiz Gonzaga que canta:  “Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo/ olha pra’quele balão multicor/ Que no céu vai sumindo...”. Será, seu Luiz, que nosso São João pode sumir? E Luiz me responde: “Foi numa noite/ Igual a esta/ Que tu me deste/ O teu coração/ O céu estava/ Todinho em festa/ Pois era noite de São João/ Havia balões no ar/ Xote e baião no salão/ E no terreiro o seu olhar/ Que incendiou meu coração”. Será que Luiz quis dizer que o São João é um amor sem volta? Breve, breve, Luiz, essa caixa será usada novamente, lhe prometo.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira