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sábado, 27 de março de 2021

Como Nossos Pais

 


Uma melodia ecoa na rotina do meu amanhecer. Um galo canta. Desperta em mim aconchego, infância, café da manhã, escola. Repito o ato da minha mãe. Nesta manhã preparo a refeição de minha filha, após acordá-la e encaminhá-la para o banho. Ouço também o cacarejar de galinhas. Sorrio. Lembro-me de Renato Russo e dos seus versos sobre nossos pais, o repetir das ações. O assunto também é tema de música de Belchior na voz de Elis Regina. A diferença: a pandemia. Minha filha irá para a escola através de uma tela, o mundo entra em minha casa por essa janela tecnológica. Nós, do mesmo jeito, entramos na vida de outros assim. Uma Viagem na Irrealidade do Cotidiano, como escreveu Umberto Eco. Busquei outro dia contato com a natureza caminhando pelo parque, curiosa em conhecer o galo cantante. Fui na companhia do meu marido. Queria registrar o vizinho. Encontramos ele e sua família. Sim, sua companheira galinha e cerca de cinco pintinhos. Ele os protegia de nossos olhos curiosos. Quando se acostumou com nossa presença, o vimos também em sua rotina de cuidados e ensino das suas crias. Senti uma certa inveja de sua liberdade e de todo o espaço. Nunca pensei que sentiria algo semelhante. A similaridade com nosso núcleo está no revezamento de cuidados. Eu e meu companheiro alternamos as manhãs, assim evitamos a sobrecarga. Sei que em lares tradicionais essa não é a realidade. Apoiamo-nos e, mesmo assim, como todos, o cansaço bate. Um ano de pandemia. Um ano longe dos familiares. Um ano em que perdemos tanta gente querida. Alimentamo-nos com arte, leitura, música, filmes divertidos, cuidando de plantas e dos nossos animais. Amamos assistir a vídeos de bichos e situações engraçadas. Acompanhamos e partilhamos a educação da nossa filha. E ao final da tarde, próximo a nossa casa, esses passeios curtos nos alimentam de natureza. Agradeço por poder ouvir um galo cantar numa metrópole e por encontrar essa família de galináceos livre.  Que em breve nossas famílias possam ser livres  também.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

sábado, 20 de março de 2021

A Alma Literária do Gato



Sobe. Desce. Pula. Salta. Dorme. Acorda. Come. Bebe. Seria essa a rotina dos meus felinos,  se eles não acrescentassem um substantivo a um desses verbos: livro. Formou-se uma curiosa frase como sua alma felina. Gatos dormem sobre os livros. Preferência pelas pilhas. Observando essa nova mania, meu marido e eu começamos a elucubrar o motivo. Para ele nossos animais fazem isso por sentirem nosso cheiro nas obras. Apaixonada por histórias, penso que eles querem nos imitar por acharem que somos gatos também. Afinal, andamos com esses objetos interessantes por todos os lados e por vezes chegamos a dormir com eles em nosso peito. Gatos e livros. Esse somatório já deu inclusive muitas linhas escritas por diversos escritores. Posso citar alguns. O poeta William Burroughs fez um livro todo dedicado aos seus companheiros. Jorge Luiz Borges tem um poema cujo título é “A um gato”. Nosso Vinicius de Moraes escreveu poesia e musicou esses versos “Com um lindo salto leve e seguro/O gato passa do chão ao muro / Logo mudando de opinião/Passa de novo do muro ao chão..”. E na atualidade conheço muitos outros que mantêm essa tradição de escrever sobre seus companheiros. 

Por isso dormir sobre livros seria já parte do inconsciente felino? Já que são companheiros constantes de escritores? O gato foi introduzido como animal doméstico há milhares de anos, algumas fontes citam que na região da África. Vieram bem depois dos cachorros e preservam ainda muitos resquícios de seu tempo de liberdade. Os meus perderam muito dessa selvageria ancestral. Amam carinho e exigem atenção. Tenha um gato e nunca estará sozinho. Eles querem estar perto, não importa o que estejamos fazendo. Inclusive tivemos que colocar uma barreira na porta do atelier, ou teríamos de viver com trabalhos destruídos. Amam marcar com suas patinhas pinturas recém-feitas ou sentar nas teclas do computador. Seria essa então a razão de gostarem tanto dos livros a ponto de dormirem sobre eles? Explico-lhe. É nesses momentos que lhes damos mais carinho, é quando estamos tranquilos, sem distrações, e muitas vezes partilhamos com eles alguma descoberta do que estamos lendo. Seria isso? Associaram livros ao aconchego? Ao acolhimento? As crianças também são assim, em horas de leitura chegam em busca de carinho. Ler é respiro, é partilha. Enquanto escrevo meu gato Spike me acompanha com seus olhos. Saberia que hoje ele é o personagem de minha escrita?

 Ana Paula Mira, escritora.


#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

sábado, 13 de março de 2021

O Mundo Passa pelas Flores

 



Comprei uma planta florida. Não sei o nome dela. Nem tenho aplicativo para saber. Acho impessoal buscar seu significado assim. Prefiro o mistério. Algo similar ao que existe no feminino. Essa aura que existe sobre nosso significado, o ser mulher. Não podemos ser traduzidas por aplicativos. Há séculos pesquisadores, filósofos e escritores se debruçam sobre esse assunto, livros, ensaios tratados.  Afinal, que bicho é esse que sangra todo mês? Que ser é esse que tem força para expulsar de seu ventre a humanidade que segue? Como seria se a mulher perdesse a capacidade de reproduzir? Diante da catástrofe que enfrentamos com a pandemia e a morte de tantos hoje? Batemos 2400 mortes. Sem nascimentos, seria a nossa extinção. Quando algo ameaça às gestantes, o primeiro ato é protegê-las. A sociedade se mobiliza para lhes dar condições de parir e humanidade não desaparecer. Cidades mais velhas no mundo viram sua população diminuir, já que o número de jovens é menor que o de idosos, e não nascem tantas crianças.  
Recordo que a planta florida surgiu aqui em casa por conta da visita de uma abelha silvestre. Fui movida a adquirir a planta pelo fato de que as abelhas operárias precisam de alimento para levar para o único ser capaz de dar continuidade à colmeia, a abelha rainha, que é alimentada e cuidada para reproduzir. Quis ajudar a minha visitante.  Só que muitas mulheres grávidas em nosso país não vão contar com essa compreensão, discernimento de seus pares e a proteção necessária. Muitas sofrem violência diária e não têm alimento suficiente, estão desprotegidas. E como ficam essas crianças nascidas em situação tão desfavorável? Qual leitura seus códigos genéticos trarão para o mundo, qual o resultado disso para nosso planeta? Temos muito a aprender com as sociedades dos insetos. E nisso concordo com Manoel de Barros, poeta das miudezas.
Molho minha planta todos os dias, ela gosta da umidade e de ser tocada pelo sol.  Deixo-a próxima à janela. Faz-lhe companhia uma planta chamada Jiboia, que colhi nascendo na calçada de minha rua. Apoiam-se distantes de seu ambiente natural. Uma em cada vaso, distintas e iguais no desejo de continuarem vivas. 


 Ana Paula Mira, escritora.


#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

sábado, 6 de março de 2021

Mitologia à Moda da Casa

 



Ponho a mesa para meu lanche da manhã. Sorvo café espiando as copas das árvores. Um ritual amoroso comigo quando estou em casa. Esvazio-me de ansiedades assim.  Hoje minha filha veio me fazer companhia. Conversa com a velocidade do relâmpago, empolgada com a série de livros que está lendo. Atropela-se nas palavras e eu entendo pouco do relato. Peço que fale mais devagar. Acaba por contar quase todo o conteúdo, tirando-me a surpresa de uma leitura futura. Sorrio constatando isso. Procuro no aguaceiro de palavras algo que nos conecte. O assunto por trás dos livros que ela devora atualmente se baseia na mitologia grega. No primeiro livro que leu, Percy Jackson e o L
adrão de Raios
, de Rick Riordan, caiu de paixão pelos personagens e pelo escritor. A temática também me fascina. Isso é bom, a adolescência vai trazendo outros assuntos diferentes do interesse dos pais, abre brechas nas relações. É a busca pela própria identidade. Lembro do mito de Deméter, a deusa da fertilidade, e de sua filha Perséfone, e pergunto se em algum momento isso está nos livros. Ela diz que sim. Pergunto se ela sabe como Perséfone casou-se com Hades, o deus do mundo subterrâneo. Com sua negativa, começo meu relato. Acontece que Perséfone era a única filha de Deméter, a mãe lhe tinha muito amor. Crescida, Perséfone foi passear com as ninfas nos jardins do Olimpo. Quando estava com a Ninfa Siena, apareceu Hades, que encantado com Perséfone, a raptou. Temendo que Siena contasse o que aconteceu, já que esta era fiel a Perséfone, o deus do submundo a transformou em uma fonte de água, ficando somente o cinto da deusa boiando sobre ela.

Percebendo o desaparecimento de sua filha, Deméter desespera-se. Ronda todo o globo terrestre e não a encontra em lugar algum.  Por último, encontra o cinto da jovem deusa,  boiando na fonte da ninfa Siena e entende o que aconteceu. Informa a todos que tirará da terra toda a fertilidade e só devolverá quando sua filha retornar. Zeus interfere, mas a filha da deusa somente ficará com sua mãe por seis meses, já que no submundo acabou comendo a romã, e comer do fruto do mundo de Hades significava estar presa ao subterrâneo eternamente. Esse mito explica as estações do ano. Eu o leio de outra forma nesse instante. Vejo nele a iniciação feminina, a menina que se torna mulher. Que se afasta da mãe para ter a sua própria identidade. Não adianta o choro materno. Uma vez iniciado o processo, não existe retorno ao ninho, não como antes. Vejo a despedida da infância e a chegada da adolescência, breve uma mulher surgirá. Lendo os mitos, vou me preparando. Ofereço à minha filha um pouco de minha refeição. Aproveito sua presença agora. Peço que me conte mais sobre os livros. Ela volta a falar empolgada. Eu a escuto.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira