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domingo, 24 de outubro de 2021

Infâncias Sequestradas



Ele caminhava silencioso pelo corredor da padaria, menino de uns dez anos, cabisbaixo, roupa puída, mas limpa. 

Senhora, pode ajudar a alimentar minha irmã? 

Quase não entendi a pergunta.

Preciso de leite. ̶ era pedido-sussurro. Meneei a cabeça em um quase “sim”. Continuei as compras, depois  conversei com meu marido sobre o pedido. Ele foi pegar uma caixa de leite. Estávamos no caixa, apontei para o leite e olhei para o menino, angustiado pegou um saco de leite em pó e mostrou para mim.

Pode ser esse?  ̶  perguntou. Meu marido acenou que sim. A caixa reclamou sobre ele ainda receber e ficar escolhendo o que ganhar.

  Tem muita gente com fome hoje em dia   Se a irmã for pequena, melhor um leite que dilua.  

Arde meu estomago num sentimento deslocado. Despedi-me do menino na porta, uma outra senhora o ajudou com pão e ovos. Quase feliz desce a rua.

Vivemos  força de guerra, criança!  Segue invisível, escolha sombras e descansa, o sol arderá até tarde.  Versos compõe nossos dias, A cruzada das crianças de Brechet diz presente.  Meninos brincam de bola as margens de rios-esgotos, empinam pipas nos aterros e viajam no faz de contas nos caminhos das feiras, enquanto empurram os carros-de-mão.

Vivemos força de guerra, criança! 


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 29 de agosto de 2021

Bebês de um Mundo Novo

    







Embaracei esta manhã em um pé-bebê de Araçá. Eu estava em seu caminho, distraída fui envolvida por seus galhos,  pedi desculpas tocando-lhe os frutos. Suspirei e lembrei-me de outros bebês, os da minha família, nasceram nesses tempos pandêmicos. Eles habitam seus pequenos núcleos nesse distanciamento necessário, vejo-os crescer pelas telas tecnológicas, os parabéns cantamos em encontros virtuais. De minha casa, cercada por meus gatos, plantas, livros e minha família, vou diluindo essa saudade. Às vezes, encontro-os de longe, sem tocá-los. Na rapidez da aprendizagem desses pequenos seres, eles respondem e reconhecem nossas faces.  Construo para eles versos e livros artesanais, leio as histórias, mostro as imagens e vamos interagindo. Viajo na irrealidade do cotidiano, citando Umberto Eco. Assim, esta semana, abri uma tela para uma escola em Ipiaú, no Sudoeste da Bahia, e, virtualmente, fui até uma sala de aula de crianças da terceira série. Eles em fila indiana, ansiosos pela presença de autores, perguntavam sobre  nosso livro. Queriam saber sobre a escolha do nome Leo e Lua, sobre minha origem na cidade vizinha, Jequié, sobre as ilustrações, sobre a quantidade de palavras no livro. Respondi uma a uma. A representação do céu e da lua do sertão, as quatrocentas palavras do livro; conversamos sobre Jequié e descobri vários pequenos conterrâneos. Um apresentou seu livro sobre elementares com seus desenhos, e as explicações confidenciaram desejos, como ter uma caixa de lápis com cinquenta cores. Surpreenderam-me com perguntas sobre os personagens não ter cores, emocionaram-me. Vejo-os adaptados a conversar por tela e eu ainda em adaptação. Como são incríveis os seres jovens na sua predisposição a  reorganizar seu modo de dança no mundo. Aquele pé de Araçá se adaptou crescendo num espaço onde carros estão estacionados e consegue dar frutos. Sim, eles estavam de máscaras, distanciados, com o olhar primeiro, o olhar ao novo de criança mantido, a empolgação, a emoção no encontro. A criança, sempre um poeta em sua natureza, nos ensinando tanto. Quero esse olhar primevo da infância, essa disposição à descoberta, ao aprendizado, ao descortinar esse novo mundo.


Ana Paula Mira

Escritora


sábado, 21 de agosto de 2021

Meninas, Gatos e Acesso à Educação

 




Era um livro pequeno, preto, poucas letras douradas. O autor, desconhecido para meus treze anos de vida. Edgar Alan Poe. Nunca esqueci um dos contos: O gato. Eu não me importava em enfrentar o sol árido das tardes de Jequié  para buscar na vizinha de bairro os livros. O mistério arquitetado naquelas páginas ganhou minha curiosidade. Aquele autor dialogava comigo. Revivi a sensação dessa primeira leitura conversando com meu médico. O gato e sua narrativa, os acontecimentos, o sufocamento do personagem, o destino do animal e... da mulher. Naquela história eu defendia o felino. Seu encanto, seu silêncio, seu mistério natural fora usado com maestria pelo escritor. Na idade média, o Papa Gregório XI estabeleceu que os felinos eram companheiros de bruxas, incluindo-os na lista de hereges. Depois de muitos serem exterminados em fogueiras da Santa Inquisição, houve um pico na população de roedores, trazendo a peste Negra. O quanto as lendas sobre os gatos pretos companheiros de feiticeiras trazem para esse animal e a mulher um destino de sofrimento nestes dias?  Conspirações e histórias falsas não são prerrogativas de nosso tempo. Na minha adolescência não percebia essas nuances sobre as mitologias; o autor conversava comigo e isso bastava.  Nesse agosto, mês das superstições, caiu sobre nós um treze numa sexta-feira.  Quando releio esse conto, reflito. Gatos e mulheres. Na história de Edgar Allan Poe tanto o gato quanto a mulher têm um destino onde partilham sofrimentos. As areias do deserto nos trazem notícias, mulheres perdem o direito de ir e vir como no conto, começam a serem emparedadas em sua própria casa. Afeganistão, tão distante. Será? Como andam as meninas sem condições financeiras em nosso país?  No nosso semiárido, além do calor, elas lutam para irem à escola nos dias de seus ciclos; têm muitas faltas por não terem recurso para comprar absorventes.  Como às vezes conseguem ir? Utilizam objetos como tecidos ou até papelão. Como poderão, no futuro, lembrar dos seus autores preferidos se não possuem o básico para estudar? Como poderíamos dizer que a elas é permitido o direito de ir e vir? Estariam também emparedadas? Uma lei de proteção sobre fornecimento de absorventes não consegue ser discutida no plenário da Câmara.  Medo da palavra menstruar, desse mistério de ser mulher ou puro machismo. Gatos pretos e mulheres caminham juntos na mesma sombra por esse planeta chamado Terra.


Ana Paula Mira, escritora. 

Instagram: @ana.paula.mira

sábado, 7 de agosto de 2021

Papel Tem Cheiro de Infância

 






Nessa manhã, minha mesa comporta diversos papéis de  várias gramaturas e cores, arrumados em cadernos pautados, de esboço, ou soltos como os destinados à pintura. Observo os coloridos para as dobraduras, deles  ouço as minhas memórias: a campainha de minha escola infantil, minhas mãos de criança tateando a sacola em busca de um copo que não encontra. Vejo-me pegando uma folha de caderno, dobrando-a e dela obtendo o utensílio desejado. Corro ao bebedouro, fico salva da sede.  O papel sempre foi para mim algo mágico, onde as imagens podiam ser manifestadas  como letras ou linhas com ou sem formas. Era de onde extraía os barcos de papel que flutuavam nas correntes e nas barragens que produzíamos após uma chuva. Minhas irmãs e eu. Lembro-me de uma grande caixa de papel que veio embalando nossa geladeira. Minha mãe nos propôs transformá-la em uma casa, brincamos dias; alguém trouxe uma menor, minha mãe a acoplou à outra e nossa casa ganhou cômodo. Dias alegres aqueles com as caixas de papelão.

Minha tia-avó, Tidinha,  costumava, quando jovem, usar moldes vazados de papel para pintar. Eu costumava pendurar na borda da mesa e ver seus pincéis preenchendo os vazios do molde, fazendo surgir nos tecidos diversos desenhos. Quando suas tintas estavam perto do fim ela me presenteava com elas. Que felicidade para mim! Eu aproveitava todos os espaços e papéis possíveis e pintava meu mundo. Na minha adolescência  começamos a fabricar nosso próprio papel, a reaproveitar as sobras e criar. Gostaria de voltar a essa atividade. Recebíamos cartas de queridos naqueles papéis reciclados, resgatávamos naquilo milênios de aprendizados, impregnados dos primeiros descobridores, chineses, italianos entre tantos outros.

 

Quando minha filha era pequena, sempre havia em minha bolsa caderno e giz cera. Quando íamos a um ambiente adulto, ela não ficava só, eu me debruçava com ela criando personagens, realizando teatro com os dedos, inventando histórias, colorindo. Alguns adultos acabavam aderindo ao movimento, deixando vir sua criança de outrora. Foi assim que comecei aos poucos a voltar a desenhar e a escrever para a infância. Um exercício parecido com o de vários outros escritores. Um dia ouvi um colega dizer que a diferença entre um artista e outras pessoas é que todos começam uma arte na infância, os que não param é que se tornam artistas. O processo da arte é contínuo, o realizar é o que importa. O produto? Uma consequência. Eu continuo a brincar com papéis, a sentir suas texturas e preenchê-los com pensamentos, ideias, palavras, cores. Gosto também de cortá-los e dar outros formatos, ou dobrá-los e transformá-los em livros artesanais, ou de criar os moldes de um livro.  Assim espalho o prazer pelo objeto para outras pessoas. 


Ana Paula Mira, escritora.

Instagram: @ana.paula.mira






domingo, 1 de agosto de 2021

Cápsulas do Tempo




A louça branca reflete as cores da paleta de aquarela que pintei esta semana:  azul, ocre, verde e nanquim. O objeto reflete uma pequena memória. Penso que os objetos são baús de conjuntos de história. Recordo que a ideia de misturar pigmentos e água para criar desenhos surgiu no Egito, mas suas características ganharam forma há dois mil anos na China, foram abraçadas pelo Japão, Índia, Europa e  chegaram até nós pelos portugueses.  As obras de arte são cápsulas do tempo que contam as histórias da humanidade: gravuras, quadros, estátuas, painéis, cerâmicas, livros, esculturas, cinema. Melancólica, lembro-me do fogo que abraçou a cinemateca esta semana, não o fogo da criação, mas da destruição de nossa cultura. Registros de pensamentos, costumes, ideias, imagens, se foram. Temos agora nossa  biblioteca de Alexandria, uma biblioteca de filmes queimados. Gostaria que fosse o fogo que transforma,  que preservou as placas cuneiformes feitas de argila da Mesopotâmia, descobertas no século XIX, e que nos revelou o mito de origem Sumério de Gilgamesh. Nossa memória ainda está sendo consumida de outra forma pela epidemia. Tantos artistas, tantos saberes se foram precocemente. Nas Palavras de Jade, trouxe essa inquietação sobre a preservação da memória. A personagem ganhou um baú de seu avô, onde guarda sua coleção de palavras. Um dia, Jade perde essas palavras, fica desolada. Hoje, os brasileiros que sabem a importância da cultura estão como essa personagem, sentindo-se órfãos. Jade resolveu seu problema, a história teve um final feliz. Gostaria de ser o autor da realidade e fazer o tempo voltar, criar seres que cuidassem da arte como uma personagem apaixonada por seu baú. Mas eu não sou o criador dessa história. Olho minhas tintas, objetos de arte, e me pergunto: o que ficará para o futuro? O que restará de nossa arte, de nossas memórias?

 ____________________________ ______________________   Ana Paula Mira, escritora.


#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 25 de julho de 2021

Meus Animais e eu






Quase trouxe um cachorrinho para casa. Meu marido, antes mesmo de dar bom-dia falou. Ele havia saído antes de eu acordar para ir à padaria comprar o rotineiro. No retorno encontrou o animal perdido. Era preto e tinha olhos de quem conhecia o conforto de uma casa. Logo mais, dois transeuntes se juntaram preocupados com o destino do canino. Certeza de que tinha dono, logo se via pelo jeito perdido que se comportava. Começaram a discutir seu destino; um dono de barraca interveio, garantindo que já o tinha visto antes, que ele costumava fugir e que iria retornar ao seu lar. Convencido, meu marido retornou para casa, mas trouxe o cachorrinho no sentimento, dessa vez. Temos dois gatos, o primeiro, Osho, foi adotado por ele. Um dia, tarde da noite, ele  deu uma pausa na pintura que fazia e foi olhar a rede social. Gatinhos ainda com resto de cordão umbilical foram encontrados abandonados em uma rua, e uma amiga sua pedia ajuda. Ele se comoveu com um branco e preto e me fez surpresa. E assim O sho chegou a nossas vidas. Nossa filha era pequena, e ele, filhote, exigia atenção. Início  tumultuado. Osho ciumava muito dela e costumava arranhá-la quando estava em meu colo. Eu perdia a paciência e brigava com ele, que corria para proteção do meu marido. Ele encheu a nossa vida descobrindo o mundo, brincando. A infância do gato passa muito rápido, ainda bem. Aos três anos ele começou a mostrar sinais de estresse quando ficávamos fora de casa por muito tempo. Nessa época encontrei um gato abandonado em uma caixa nas imediações do meu trabalho, deveria ter um mês, e o trouxe como presente para minha filha, na ocasião com uns sete anos. E assim Spike se tornou irmão de Osho. Chegou pequeno, o que facilitou o convívio. Osho se comportava como o irmão mais velho. Spike, com uma personalidade mais dominante, sempre exigiu atenção e carinho de meu companheiro nos momentos de escrita e leitura. Ele tem predileção por subir no meu material de trabalho e quando quer massagem no pescoço senta sobre meu teclado. Enquanto não cedo ao seu desejo, se recusa a sair. Nesta pandemia muitos escolheram ter um animal de estimação. Quem escolhe esse caminho deve pesquisar bastante. Um animal não é um objeto que se devolve, eles constroem vínculos e confiança. Fico pensando no cachorrinho que meu marido encontrou. Será que achou seu dono? Será que foi abandonado? Antes da pandemia, o abandono de animais era um hábito comum. Amigos que ajudam abrigos relatam que essa prática aumentou muito. Casos de animais que perderam seus donos por morte ou porque estes não tiveram mais condições de arcar com as despesas. Spike se aconchega a mim, mostra a barriga, faço cócegas, ele ronrona. Desce e anda em direção ao corredor, mia novamente. Entendi, você quer comida. Já vou. Ter gato, e ter dono.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira



sábado, 17 de julho de 2021

O Nascer de um Livro






Velas espalhadas pela mesa iluminavam as saudades. Pela claridade amarela, os olhos de uma tocadora avistaram o violão na parede. O objeto deixou de ser enfeite, a moça retirou dele acordes. A música tomou conta da sala, vozes foram despertadas e as pessoas presentes cantaram o sertão. A escritora folheava o livro
Sertanilia, de Elomar Figueira. A música também era do mesmo autor. Ela cantou os versos, enquanto se lembrava de sua infância: as brincadeiras na mata branca, que provocavam arranhões, a colhida dos tomates silvestres pra fazer comidinhas. O cascalho, as pedras empilhadas, criavam mundos, cidades. Os umbuzeiros no verão, onde subia e descobria o mundo, as chuvas do período que traziam a lama, os córregos, a alegria. Mais tarde, em casa, a escritora trouxe esse momento mítico para o companheiro ilustrador. Eles partilharam suas lembranças, sua memória crianceira e criaram. Ela rabiscou no seu caderno as primeiras frases. Ele escolheu a prancheta e escreveu suas lembranças em desenhos. Todos os dias, ouviam Elomar e Cordel do Fogo Encantado. A casa encheu-se de sons de mata, periquitos, sabiás, curiós, azulão. Por mais curioso que fosse, encontraram na cidade grande um pé de araçá florido e acompanharam a transformação das flores em frutos. Fizeram questão de esperar eles amadurecerem, assim como amadureciam suas ideais criativas e provaram do fruto. Tiveram, então, a certeza: iria ser um livro. Um livro para crianças. Leo e Lua era gerado. Lembraram-se de que na infância, um dia, os meninos e meninas deixaram de ficar misturados. Os meninos só viviam pendurados nas árvores, correndo nos campos; as meninas seguiam colhendo os frutos, fazendo comidinhas e ganhando vestidos que não podiam amassar. No livro, eles se encontrariam e seria a chuva quem os uniria nas brincadeiras infantis. E provariam juntos o araçá e criariam juntos coisas incríveis. O sol e a lua se encontrariam como iguais. Chamaram uma designer que com seu toque mágico organizou esse encontro. 

Um violão, um cantador entoou os acordes do sertão trazendo a luz de Leo e Lua, enfim, para o mundo. Nesse dia havia gente de todo canto do Brasil e gente além dessas fronteiras. A escritora chorou, o ilustrador se emocionou. 

Na casa, tocou a campainha, o som estridente tomou conta do local. Era o carteiro, entregou um envelope à mãe, que passou ao marido, que passou à avó, que entregou à menina, que não segurou o grito. O envelope foi rasgado, depois o embrulho, e ela encontrou o livro.


- É meu?

- Sim, é seu.

- E o que está escrito, vó? Lê pra mim.

- Leo e Lua, querida.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 11 de julho de 2021

Mudaram as Estações e Nada Mudou

 



Vento, chuvas, calçadas úmidas, nuvens turvas, inverno. Mudanças sopram sinais. Minhas gavetas pedem vazios. Nessa nova estação sinto esse pedido. Período de desapegos. Numa sociedade de acúmulos, confesso, tenho meus excessos. Roupas, acessórios, objetos e histórias que resisto em liberar. Igual a outros humanos, envergonho em dizer. Construímos espaços, inventamos objetos necessários e os criamos. Preenchemos nossos vazios cavando o solo, abrimos buracos, extorquimos metais, exploramos áreas, devastamos florestas. Do resto não consumido, formamos entulhos, sistemas de esgotos, lagos de excrementos, bacias tóxicas. Sem lar, sem alimentos, os animais silvestres se aproximam de nós e trazem doenças desconhecidas. Caos instalado. Observo minha cômoda: madeira, dentro dela tecidos derivados de petróleo, brincos de metais. Mineração. Lembro-me do livro Ferreiros e Alquimistas de Mircea Eliade. A descoberta do ferro após as tempestades, sua forja e a invenção de armas de guerra. O desejo de dominação. Queríamos ser especiais, sentar diante da fogueira e contar histórias de conquistas. Objeto, poder e domínio da morte. Quem dominava o ferro viveria mais tempo, se aproximava dos deuses e se sentia deus. Será que esse sentimento habita ainda em nós? Ao possuirmos coisas  nos sentimentos especiais, melhores que os outros animais que habitam o planeta? Parece que perdemos essa conexão com a terra de modo contínuo durante milênios. Sem empatia, nos perdemos em nossas histórias, e o poder de criar histórias é uma das coisas que nos diferencia dos outros mamíferos. Deveríamos ter nos tornado melhores. Agora não sabemos esvaziar gavetas, e se esvaziamos queremos preencher com algo. Imprensamos nossas florestas e não sabemos como diminuir nossos avanços. Sufocamos e somos sufocados, não respiramos. Matamos nossos mitos, nossas lendas, nossos povos originais, queremos sempre novas histórias, novos objetos. Enfim, esvazio as gavetas, mas ainda não encontro respostas.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

sábado, 3 de julho de 2021





Pego a caixa de madeira. Ela fica no fundo da gaveta em minha cabeceira, descansa sem uso há quase dois anos. Às vezes a abro e olho seu interno. Passeio com meus dedos pelas fitas coloridas de cetim, pelas linhas de diversas cores, pelas flores para aplicações, pelos restos de chita. Esse mês de junho ela permanece sem ser usada. Desde que tive minha filha, uso essa caixa para armazenar as fitas e material de costura. Ela contém afeto das festas juninas desde que minha filha tinha um ano. Guardo os registros dos vários laços e enfeites que fiz para lhe trazer colorido nas festas de São João. Assim, passo para outra geração o amor por nossa cultura. Na adolescência que inicia os gostos mudam. Por um tempo, acredito que poderá até negar esse costume, mas os sons, as cantigas, um dia serão âncora de sentimentos amorosos. As festas juninas que fervem por todo o nosso Nordeste, aquecendo o frio de inverno e celebrando seu início, têm nascimento muito antigo e um tanto incerto. Têm reminiscências ibéricas, lembram as queimas das fogueiras de Beltane pelos povos celtas, bebem em fontes galesas, mas podem ter também relações com a Índia. Em cada cidade desse enorme sertão, a festa foi ganhando aspectos próprios, rodas de forró, quadrilhas, padrinhos e madrinhas de fogueira, casamentos matutos, pau de sebo, quebra-pote, cabra-cega, ritmos  e danças como xaxado, xote, baião. Fogos coloridos, guerra de espada. Alguns costumes hoje proibidos para evitar desastres ambientais, como os balões, são preservados nas músicas. A comida junina ganhou espaço por todo território nacional com a canjica, a pamonha, o amendoim cozido, a paçoca, o doce de jenipapo, os diversos licores e o quentão. A tradição é marcada pelas roupas feitas de chita, as fitas enfeitando os cabelos, os chapéus de palha e os lenços. Uma cultura que brinca com todos os nossos sentidos: visual, auditivo, sinestésico. Memórias afetivas de muitas infâncias. Ouço então estrofes conhecidas, é o Luiz Gonzaga que canta:  “Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo/ olha pra’quele balão multicor/ Que no céu vai sumindo...”. Será, seu Luiz, que nosso São João pode sumir? E Luiz me responde: “Foi numa noite/ Igual a esta/ Que tu me deste/ O teu coração/ O céu estava/ Todinho em festa/ Pois era noite de São João/ Havia balões no ar/ Xote e baião no salão/ E no terreiro o seu olhar/ Que incendiou meu coração”. Será que Luiz quis dizer que o São João é um amor sem volta? Breve, breve, Luiz, essa caixa será usada novamente, lhe prometo.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 20 de junho de 2021

Adeus Sem Presença a Quinhentos Mil Brasileiros

 






Chegou como notas estridentes um canto de lamento vindo de minha terra natal. Um amigo partiu, atingido pela peste. Meu amigo cujo contato perdi nos caminhos entre o agreste e o litoral, já morava em outra capital do Nordeste. Deixou, soube por nota em um jornal, um filho e esposa. Uma mãe desolada, pai arrasado e uma irmã em lágrimas. Era alegre, querido e leal, tendo esse último adjetivo em seu sobrenome. Mudou o tempo, mudaram as estações, e temos dores semelhantes do interior à capital. Em algum lugar, alguém recebeu essa mesma canção da partida de um querido, experimentou sentimentos iguais de frustração por não dizer adeus e por não oferecer aos familiares, em presença, os sentimentos. Isso parte nossos princípios, nossos rituais criados de conforto, desenvolvidos desde os primórdios. Estão presentes no Livro dos Mortos, no Egito, nas histórias desenterradas dos Vikings, nos túmulos da Grécia Antiga, nos sítios arqueológicos dos povos originais. O rito da morte, a despedida. Nas religiões, em nosso inconsciente coletivo. Na necessidade de perpetuar a memória pelos registros, pela arte. Fico refletindo quanta memória perdemos com a partida precoce, sem o registro da poesia de cada alma que parte nesta pandemia,
sem aviso, sem rituais. Nos corpos sem despedidas. Nos corpos que não tiveram a chance de deixar sementes. Recebo a notícia da vacina de meu companheiro com uma alegria egoísta. Minha ciência sabe que só voltaremos aos nossos ritos quando a proteção for coletiva. Neste momento, compreendo que o ritual só tem seu efeito quando é partilhado em comunidade. A despedida precisa de tempo, tantos lutos deixam nossa mente em alerta, sem descanso. Isso nos adoece, adoece nosso presente e registros futuros. Outras canções de esperança chegam de terras distantes, e as imunizações avançam em outros países. Crianças israelenses aparecem se despedindo das máscaras em salas de aula, rotinas são restabelecidas. Quando faremos essa despedida? Um dia poderemos queimar essas máscaras, num movimento Viking pelos que partiram? Será que acenderemos a luz da lamparina e acreditaremos que uma música mais otimista nos abraçará em breve e que faremos de tudo isso arte para o futuro?

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 13 de junho de 2021

Criança Não Trabalha, Criança Brinca







Observo seu suspiro, seu corpo envolto nos lençóis. Os olhos movimentam-se rápido, provavelmente sonha algo, momento mais profundo do sono. Gosto de olhar minha filha enquanto dorme, penso que as mães gostam de admirar suas crias. Já vi essa cena antes. Eu era a menina que dormia, meus pais vinham e endireitavam meus lençóis. Nos finais de semana, eles tentavam me manter na cama; eu, menina espevitada que era, gostava de acordar cedo para brincar, assistir a algum programa matinal na TV. Tive a permissão e o privilégio de ser criança. Tempos depois, cheguei à conclusão de que minha mãe exagerava. Sozinha, cuidava de todas nós, e não deixou por um bom tempo que colaborássemos nas atividades diárias. Vizinhos, parentes, davam opiniões. Achavam que minha mãe nos mimava. Ela era firme: “Eu não tive chance na minha época, fui morar em outras casas, trabalhei muito cedo. Você deve estudar e brincar”. Quando menina, por ser a primeira, era a mais cobrada pelos familiares. Minha mãe repetia: “Ela é a que mais gosta de estudar, ela não tem tempo pra ajudar e ainda precisa brincar”. Eu ouvi muito: “Vocês não são ricos para ter alguém para ajudar, ela deveria colaborar nas tarefas de casa". Depois de tanto ouvir, tentei ajudá-la. Minha mãe inventava que íamos gastar muita água, ou que estava demorando demais, ou que poderíamos nos machucar no fogão. E assim ia adiando nossa iniciação nas tarefas. Resultado: somente aprendi a cozinhar aos dezesseis anos e para a surpresa dela tanto eu gostava quanto conseguia fazer coisas saborosas. Mas dona Regina só me deixava ir para cozinha nos finais de semana. Hoje essa lembrança  veio forte. Minha mãe nos protegeu e combateu o trabalho infantil. Essa luta deveria ser de todos nós. Minha filha tem as tarefas de aprendizado, arruma o quarto, mantém seus objetos organizados, ajuda a pôr a mesa e a organizar as compras, por exemplo, porém sua maior tarefa é brincar. Encontramos no nosso Brasil realidades em que isso não é possível. Como enfermeira de Saúde da Família, tive oportunidade de conhecer esse triste lado. Famílias nas quais cedo os pequenos ajudam trabalhando para trazer dinheiro para casa. Crianças cuidando de crianças para que os pais trabalhem fora. Meninas de menos de doze anos engravidando, casando, assumindo responsabilidades na infância. Crianças se envolvendo no comércio de entorpecentes, crianças brincando com armas. Nessa pandemia, situações assim se agravaram, as notícias de violências são uma constante. Não há ninguém para dizer “Criança, vá brincar, vai lá, seja livre!”.
Capitães da Areia, de Jorge Amado, tão contemporâneo…! Em minha casa, hoje distante dessas realidades, repito ações de minha mãe, protejo a infância de minha filha e não esqueço nenhum rosto de que já cuidei nessas comunidades. Ainda tenho esperança de que algum dia tudo mude.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

sábado, 29 de maio de 2021

Jornada Literária em Família

 


É preciso limpar a fonte”, não lembro bem onde ouvi essa frase. Acolho o sentido que ela traz. À noite, quando me preparo para dormir, tomo um banho quente, uso alfazema  e respondo ao chamado de minha filha. Nessa pandemia fortalecemos o hábito de ler em conjunto. Ela escolhe seu livro, lemos as jornadas de semideuses ambientadas na contemporaneidade, pelo autor americano Rick Riordan, a quem ela chama carinhosamente de Tio Rick —  aprendeu com outros fãs. Há dias que estou cansada e quero dormir, lendo outro livro. Vencida pelos argumentos de minha filha, digo sim. 

Faço isso pensando que, um dia, quando ela olhar para trás, lembrará que fomos pais presentes, que a escutavámos e partilhavámos suas alegrias. Nessa pandemia a troca entre parceiros da mesma idade nem sempre é possível, ou ocorre pelas telas. Isso me traz melancolia. O calor familiar nutre, porém sei que não é o suficiente; nossos filhos precisam de companheiros, dos seus pares. Nas jornadas dos deuses que ela tanto ama, estão presentes os conflitos das relações, as amizades, as traições, acordos e desacordos. O ciúme, a inveja, a lealdade, o amor, as paixões, a busca por um sentido. As relações familiares, os encontros e desencontros. Na presença, a vida acontece, as experiências são vividas. Nesse primeiro momento optamos por manter o ensino remoto, nosso país tarda a cobertura vacinal adequada. O pedido partiu dela para se manter em casa, nós a respeitamos, e ainda temo a doença, confesso. 

Os livros estão nos levando para um gosto em comum: a mitologia, nesse caso, a grega. Os deuses e suas histórias refletem a própria humanidade, qualidades e defeitos. Aprendemos juntos sobre Atenas, Zeus, Poseidon, Hades, Hera, Hermes, Ares, Hestia, Hefesto, Titãs, entre outros. Algo em comum nos aproxima, isso é bom, pois a adolescência é um momento de afastamento, de estabelecimento da individualidade, que é importante.

 Acabamos os cinco primeiros livros e vimos neles como pensamentos polarizados levam não somente a barreiras nos diálogos, mas à guerra e a mortes. Algo semelhante ao que vem ocorrendo na atualidade, com a manipulação da verdade nas redes sociais, levando à  polarização,  estabelecendo barreiras quase intransponíveis na nossa sociedade, abrindo possibilidades de guerras civis. Livros direcionados a um público juvenil, literatura para todas as idades. Começamos outra série do mesmo autor. Minha filha percebeu a diferença nas duas narrativas. “Mamãe, esse livro, ele fala na terceira pessoa, agora entendi por que estranhei, na outra série o herói é que é o narrador!”.  É na leitura que se faz o leitor. E vamos renovando a fonte, são novos leitores que chegam.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

domingo, 16 de maio de 2021

Tempo de Silêncios





Despertei, era estranho o silêncio. Nenhuma buzina, nem mesmo um cacarejar vinha de minha rua, nem os miados de meus gatos se manifestavam como de costume, buscando alimento. O dia cinzento, janelas cerradas e nenhum trabalhador a martelar paredes. Nos últimos dias, uma reforma conduzia barulhos que eu tentava em vão reconhecer, guinchos, metais, zumbidos, batidas. Tudo tão alto que pensar tornou-se custoso. Barulho igual faz as redes sociais nas mesmas semanas, pela morte de pessoas populares, um choro que atravessa limites, invade cidades. Decerto que na casa onde uma pessoa partiu esse silêncio chega à noite, o corpo não existe para habitar seu leito, um vazio ocupa. Dor. Pausa. Qual palavra quebrará esse silêncio e será usada para dizer às crianças: teu pai partiu, ou tua mãe partiu, ou teu avô ou seu tio?


A voz calou-se criança, o verbo retornou à sua origem, a palavra agora está no princípio. Tem de buscar um outro barulho, um violino talvez. Leia Manoel de Barros, ele sabe despertar silêncios. Os poetas trazem sentimentos e sabem
contemplar o som do mundo; te ensinarão a buscar uma música para entender a vida que partiu. 418 mil  mortos, são tantos corpos silenciados, transformados em números desumanizados, no intuito de minimizar a tragédia de tantas casas, a mudez de tantas famílias.  O barulho recomeçou agora, ele me alenta, reconheço a vida presente nos movimentos e ações dos homens, à noite eles retornaram às suas casas, às suas famílias. O galo parece sentir o mesmo e
começou a cantar, desperta e avisa: o dia iniciou, os verbos agitam as ações, o movimento aumenta, alguém retorna com o pão, cachorros levam os seus donos para passear. Meus gatos avisam que desejam atenção e a disputam com a caneta. Eles querem o fim do silêncio.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

 

domingo, 2 de maio de 2021

Histórias de Nita

 




Ela ouve um acalanto, cerra os olhos e escuta uma voz a narrar sua história favorita. Em algum lugar do mundo, diversas crianças têm essa rotina, alimentada por uma mãe, uma avó, uma tia ou um pai. No meu caso, foram diversas vozes a se alternarem nessas narrativas, tanto que é um pouco confusa minha memória sobre quem realmente contou “O macaco e O boneco de Piche”, uma história divertida que narra sobre uma velha que teve suas bananas furtadas pelo animal e resolveu prendê-lo usando um boneco de piche. O macaco acabou indo parar no forno e foi comido pela senhora. Esse alimento esdrúxulo lhe causou uma tremenda dor de barriga, e depois de ir ao banheiro, vários macaquinhos saíram tocando e cantando que viram a bunda da velha. Sim, uma história hilária e que marcou minha mente infantil. Eu jurava que era minha mãe quem a tinha contado, mas ela me revelou que foi Nita. Buscando a origem desse conto, obtive a informação, com o escritor e pesquisador Marco Haurélio, de que a história tem origem indiana e que foi levada para o continente africano, e de lá a trouxeram para o Brasil. Então, ao refletir, acho que minha mãe tem razão. Explico: Nita, nossa antiga vizinha, é afrodescendente. Lembro-me de que sua avó nos contava que sua mãe havia sido escravizada e que foi duro para ela pertencer a alguém, mas agora eram livres. Fico pensando no quanto minha pronúncia  e compreensão do português foram influenciadas por esses narradores. Toda noite minha mãe e minha vizinha estendiam um tapete no terreiro da casa, depois que já estávamos cansados de brincar, e nos preparavam com histórias para dormir. Essas narrativas recheadas do maravilhoso nos instigavam a imaginação. Eram histórias de mistérios, conquistas, comédia, derrotas, vitórias, terror. Viajávamos para outros mundos. Uma infância  com uma riqueza incalculável. Agora, como ocorreu em outros momentos da História, grupos buscando um mundo perfeito para seus filhos tentam banir histórias com conteúdos semelhantes a esses contos que eu ouvia na infância. Tentam jogar novamente na fogueira narrativas e livros milenares. A literatura é atacada, por desconhecimento do seu real significado, como arte que é. As histórias nos permitem outrar, sentir o que um personagem sente, perceber outros pensamentos, outros mundos, viver medos de maneira segura, aprender sobre ganhos e perdas, sobre o ciclo da vida. Ouvir histórias certamente me influenciou a querer escrevê-las. Hoje posso dar nome a um personagem homenageando quem me presenteou na infância. Nita se tornou Vó Nita no meu livro Leo e Lua.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira


sábado, 10 de abril de 2021

 


https://pag.ae/7X2AYRTCJ


Amores! Partilhando a pré-venda de nossa livro. Essa primeira leva fomenta nosso trabalho. Nossa live de lançamento que acontecerá pelo canal da @pirulitosecambalhotas no YouTube e terá presenças maravilhosas: os  autores do livro Ana Paula Mira e Yuri Ferraz,  o escritor e pesquisador Marco Haurélio que fez o posfacio do livro e a desigh Raquel Matsushita que trabalhou nosso livro.
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Leo e Lua é narrado no sertão desse Brasil, na casa de uma avó. Quando a chuva ganha vida o que pode acontecer? Já deixou a chuva tomar conta de sua infância? Descubra o que aconteceu nessa história.

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Para quem adquirir nosso livro até o lançamento dia 20.04 ele sai com autógrafo e já incluso o transporte, apenas 44.90. Link ao lado da foto..



sábado, 3 de abril de 2021

Princípio de um artista quando infante




No meu princípio era voz, era  a mão e os cheiros. Ela alimentava-me levando à boca palavras e bolinhos de feijão. Um dia, a Vozinha Eulina resolveu saciar outra fome que ela percebia em mim e me deu livros, quadrinhos. Acontecia sempre quando eu ficava aos seus cuidados. À tarde, quando meu primo não ocupava o quarto onde revistinhas e livros eram guardados. Minha avó era cúmplice dessa invasão. Ela autorizava que minhas mãos passeassem livres por aquele colorido. Eram um tesouro proibido por meu primo. Naquele início eu lia as imagens, ainda não conhecia bem as letras. Mas todas as tardes era naquele mundo que eu morava. Quando chovia e esfriava, minha avó me trazia um cobertor e eu afundava na leitura. Sinto ainda o respingar da água que ao ultrapassar a proteção de telha aspergia em meu rosto. Aroma de terra molhada. Um ou outro dia meu primo me achava com a prova do crime em mãos. Minha avó intercedia a meu favor. Ela dizia que me deixasse ali, pois era quando eu ficava quieta. Fui uma criança bem curiosa e espevitada. Vivia pendurada pelas mangueiras dos quintais de minha avó, criando mundos imaginários. Quando cansava, ia atrás dela, pegava as tintas que sobravam e saía pintando tudo que encontrava em seu quintal.. Não bastava o papel. Neste mês de tantas comemorações do livro infantil, lembro com muito amor de quem me incentivou a ler. Talvez minha avó tenha sentido meu amor pelos livros e percebeu que esse seria meu caminho. Ou ela cumpria sua vocação, pois vinha de uma família de mulheres educadoras. Quando eu tinha treze anos, minha Vozinha Eulina morava em Ilhéus. Ao passar as férias em sua casa, ela me apresentou O Pequeno Príncipe. O livro trouxe as primeiras leituras filosóficas sobre a vida, a amizade e  a despedida. Será que em seu inconsciente minha avó me preparou para a sua morte? Três anos depois ela faleceu. O câncer a levou em poucos meses. Ela veio se despedir, lembro-me da última vez que a vi. Tinha dezesseis anos, estava no ensino médio, naquela época não sabia bem o motivo da visita. Falamo-nos tão rápido, estava tão cheia de tarefas, nem cheguei a mostrar os poemas que construía... Sei que ela gostaria de saber o resultado daquelas tardes longas de infância. Saber que hoje incentivo tantas crianças a ler, escrevendo para elas. Ela ficaria muito feliz. Leitura com afeto deixa marcas leves na alma, traz doçura à vida. Obrigada, Vó, por tudo. Sempre te amarei.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira