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domingo, 2 de maio de 2021

Histórias de Nita

 




Ela ouve um acalanto, cerra os olhos e escuta uma voz a narrar sua história favorita. Em algum lugar do mundo, diversas crianças têm essa rotina, alimentada por uma mãe, uma avó, uma tia ou um pai. No meu caso, foram diversas vozes a se alternarem nessas narrativas, tanto que é um pouco confusa minha memória sobre quem realmente contou “O macaco e O boneco de Piche”, uma história divertida que narra sobre uma velha que teve suas bananas furtadas pelo animal e resolveu prendê-lo usando um boneco de piche. O macaco acabou indo parar no forno e foi comido pela senhora. Esse alimento esdrúxulo lhe causou uma tremenda dor de barriga, e depois de ir ao banheiro, vários macaquinhos saíram tocando e cantando que viram a bunda da velha. Sim, uma história hilária e que marcou minha mente infantil. Eu jurava que era minha mãe quem a tinha contado, mas ela me revelou que foi Nita. Buscando a origem desse conto, obtive a informação, com o escritor e pesquisador Marco Haurélio, de que a história tem origem indiana e que foi levada para o continente africano, e de lá a trouxeram para o Brasil. Então, ao refletir, acho que minha mãe tem razão. Explico: Nita, nossa antiga vizinha, é afrodescendente. Lembro-me de que sua avó nos contava que sua mãe havia sido escravizada e que foi duro para ela pertencer a alguém, mas agora eram livres. Fico pensando no quanto minha pronúncia  e compreensão do português foram influenciadas por esses narradores. Toda noite minha mãe e minha vizinha estendiam um tapete no terreiro da casa, depois que já estávamos cansados de brincar, e nos preparavam com histórias para dormir. Essas narrativas recheadas do maravilhoso nos instigavam a imaginação. Eram histórias de mistérios, conquistas, comédia, derrotas, vitórias, terror. Viajávamos para outros mundos. Uma infância  com uma riqueza incalculável. Agora, como ocorreu em outros momentos da História, grupos buscando um mundo perfeito para seus filhos tentam banir histórias com conteúdos semelhantes a esses contos que eu ouvia na infância. Tentam jogar novamente na fogueira narrativas e livros milenares. A literatura é atacada, por desconhecimento do seu real significado, como arte que é. As histórias nos permitem outrar, sentir o que um personagem sente, perceber outros pensamentos, outros mundos, viver medos de maneira segura, aprender sobre ganhos e perdas, sobre o ciclo da vida. Ouvir histórias certamente me influenciou a querer escrevê-las. Hoje posso dar nome a um personagem homenageando quem me presenteou na infância. Nita se tornou Vó Nita no meu livro Leo e Lua.

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira


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