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domingo, 20 de junho de 2021

Adeus Sem Presença a Quinhentos Mil Brasileiros

 






Chegou como notas estridentes um canto de lamento vindo de minha terra natal. Um amigo partiu, atingido pela peste. Meu amigo cujo contato perdi nos caminhos entre o agreste e o litoral, já morava em outra capital do Nordeste. Deixou, soube por nota em um jornal, um filho e esposa. Uma mãe desolada, pai arrasado e uma irmã em lágrimas. Era alegre, querido e leal, tendo esse último adjetivo em seu sobrenome. Mudou o tempo, mudaram as estações, e temos dores semelhantes do interior à capital. Em algum lugar, alguém recebeu essa mesma canção da partida de um querido, experimentou sentimentos iguais de frustração por não dizer adeus e por não oferecer aos familiares, em presença, os sentimentos. Isso parte nossos princípios, nossos rituais criados de conforto, desenvolvidos desde os primórdios. Estão presentes no Livro dos Mortos, no Egito, nas histórias desenterradas dos Vikings, nos túmulos da Grécia Antiga, nos sítios arqueológicos dos povos originais. O rito da morte, a despedida. Nas religiões, em nosso inconsciente coletivo. Na necessidade de perpetuar a memória pelos registros, pela arte. Fico refletindo quanta memória perdemos com a partida precoce, sem o registro da poesia de cada alma que parte nesta pandemia,
sem aviso, sem rituais. Nos corpos sem despedidas. Nos corpos que não tiveram a chance de deixar sementes. Recebo a notícia da vacina de meu companheiro com uma alegria egoísta. Minha ciência sabe que só voltaremos aos nossos ritos quando a proteção for coletiva. Neste momento, compreendo que o ritual só tem seu efeito quando é partilhado em comunidade. A despedida precisa de tempo, tantos lutos deixam nossa mente em alerta, sem descanso. Isso nos adoece, adoece nosso presente e registros futuros. Outras canções de esperança chegam de terras distantes, e as imunizações avançam em outros países. Crianças israelenses aparecem se despedindo das máscaras em salas de aula, rotinas são restabelecidas. Quando faremos essa despedida? Um dia poderemos queimar essas máscaras, num movimento Viking pelos que partiram? Será que acenderemos a luz da lamparina e acreditaremos que uma música mais otimista nos abraçará em breve e que faremos de tudo isso arte para o futuro?

Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

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