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domingo, 13 de junho de 2021

Criança Não Trabalha, Criança Brinca







Observo seu suspiro, seu corpo envolto nos lençóis. Os olhos movimentam-se rápido, provavelmente sonha algo, momento mais profundo do sono. Gosto de olhar minha filha enquanto dorme, penso que as mães gostam de admirar suas crias. Já vi essa cena antes. Eu era a menina que dormia, meus pais vinham e endireitavam meus lençóis. Nos finais de semana, eles tentavam me manter na cama; eu, menina espevitada que era, gostava de acordar cedo para brincar, assistir a algum programa matinal na TV. Tive a permissão e o privilégio de ser criança. Tempos depois, cheguei à conclusão de que minha mãe exagerava. Sozinha, cuidava de todas nós, e não deixou por um bom tempo que colaborássemos nas atividades diárias. Vizinhos, parentes, davam opiniões. Achavam que minha mãe nos mimava. Ela era firme: “Eu não tive chance na minha época, fui morar em outras casas, trabalhei muito cedo. Você deve estudar e brincar”. Quando menina, por ser a primeira, era a mais cobrada pelos familiares. Minha mãe repetia: “Ela é a que mais gosta de estudar, ela não tem tempo pra ajudar e ainda precisa brincar”. Eu ouvi muito: “Vocês não são ricos para ter alguém para ajudar, ela deveria colaborar nas tarefas de casa". Depois de tanto ouvir, tentei ajudá-la. Minha mãe inventava que íamos gastar muita água, ou que estava demorando demais, ou que poderíamos nos machucar no fogão. E assim ia adiando nossa iniciação nas tarefas. Resultado: somente aprendi a cozinhar aos dezesseis anos e para a surpresa dela tanto eu gostava quanto conseguia fazer coisas saborosas. Mas dona Regina só me deixava ir para cozinha nos finais de semana. Hoje essa lembrança  veio forte. Minha mãe nos protegeu e combateu o trabalho infantil. Essa luta deveria ser de todos nós. Minha filha tem as tarefas de aprendizado, arruma o quarto, mantém seus objetos organizados, ajuda a pôr a mesa e a organizar as compras, por exemplo, porém sua maior tarefa é brincar. Encontramos no nosso Brasil realidades em que isso não é possível. Como enfermeira de Saúde da Família, tive oportunidade de conhecer esse triste lado. Famílias nas quais cedo os pequenos ajudam trabalhando para trazer dinheiro para casa. Crianças cuidando de crianças para que os pais trabalhem fora. Meninas de menos de doze anos engravidando, casando, assumindo responsabilidades na infância. Crianças se envolvendo no comércio de entorpecentes, crianças brincando com armas. Nessa pandemia, situações assim se agravaram, as notícias de violências são uma constante. Não há ninguém para dizer “Criança, vá brincar, vai lá, seja livre!”.
Capitães da Areia, de Jorge Amado, tão contemporâneo…! Em minha casa, hoje distante dessas realidades, repito ações de minha mãe, protejo a infância de minha filha e não esqueço nenhum rosto de que já cuidei nessas comunidades. Ainda tenho esperança de que algum dia tudo mude.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

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