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domingo, 11 de julho de 2021

Mudaram as Estações e Nada Mudou

 



Vento, chuvas, calçadas úmidas, nuvens turvas, inverno. Mudanças sopram sinais. Minhas gavetas pedem vazios. Nessa nova estação sinto esse pedido. Período de desapegos. Numa sociedade de acúmulos, confesso, tenho meus excessos. Roupas, acessórios, objetos e histórias que resisto em liberar. Igual a outros humanos, envergonho em dizer. Construímos espaços, inventamos objetos necessários e os criamos. Preenchemos nossos vazios cavando o solo, abrimos buracos, extorquimos metais, exploramos áreas, devastamos florestas. Do resto não consumido, formamos entulhos, sistemas de esgotos, lagos de excrementos, bacias tóxicas. Sem lar, sem alimentos, os animais silvestres se aproximam de nós e trazem doenças desconhecidas. Caos instalado. Observo minha cômoda: madeira, dentro dela tecidos derivados de petróleo, brincos de metais. Mineração. Lembro-me do livro Ferreiros e Alquimistas de Mircea Eliade. A descoberta do ferro após as tempestades, sua forja e a invenção de armas de guerra. O desejo de dominação. Queríamos ser especiais, sentar diante da fogueira e contar histórias de conquistas. Objeto, poder e domínio da morte. Quem dominava o ferro viveria mais tempo, se aproximava dos deuses e se sentia deus. Será que esse sentimento habita ainda em nós? Ao possuirmos coisas  nos sentimentos especiais, melhores que os outros animais que habitam o planeta? Parece que perdemos essa conexão com a terra de modo contínuo durante milênios. Sem empatia, nos perdemos em nossas histórias, e o poder de criar histórias é uma das coisas que nos diferencia dos outros mamíferos. Deveríamos ter nos tornado melhores. Agora não sabemos esvaziar gavetas, e se esvaziamos queremos preencher com algo. Imprensamos nossas florestas e não sabemos como diminuir nossos avanços. Sufocamos e somos sufocados, não respiramos. Matamos nossos mitos, nossas lendas, nossos povos originais, queremos sempre novas histórias, novos objetos. Enfim, esvazio as gavetas, mas ainda não encontro respostas.


Ana Paula Mira, escritora.

#anapaulamiraautora @ana.paula.mira

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