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sábado, 21 de agosto de 2021

Meninas, Gatos e Acesso à Educação

 




Era um livro pequeno, preto, poucas letras douradas. O autor, desconhecido para meus treze anos de vida. Edgar Alan Poe. Nunca esqueci um dos contos: O gato. Eu não me importava em enfrentar o sol árido das tardes de Jequié  para buscar na vizinha de bairro os livros. O mistério arquitetado naquelas páginas ganhou minha curiosidade. Aquele autor dialogava comigo. Revivi a sensação dessa primeira leitura conversando com meu médico. O gato e sua narrativa, os acontecimentos, o sufocamento do personagem, o destino do animal e... da mulher. Naquela história eu defendia o felino. Seu encanto, seu silêncio, seu mistério natural fora usado com maestria pelo escritor. Na idade média, o Papa Gregório XI estabeleceu que os felinos eram companheiros de bruxas, incluindo-os na lista de hereges. Depois de muitos serem exterminados em fogueiras da Santa Inquisição, houve um pico na população de roedores, trazendo a peste Negra. O quanto as lendas sobre os gatos pretos companheiros de feiticeiras trazem para esse animal e a mulher um destino de sofrimento nestes dias?  Conspirações e histórias falsas não são prerrogativas de nosso tempo. Na minha adolescência não percebia essas nuances sobre as mitologias; o autor conversava comigo e isso bastava.  Nesse agosto, mês das superstições, caiu sobre nós um treze numa sexta-feira.  Quando releio esse conto, reflito. Gatos e mulheres. Na história de Edgar Allan Poe tanto o gato quanto a mulher têm um destino onde partilham sofrimentos. As areias do deserto nos trazem notícias, mulheres perdem o direito de ir e vir como no conto, começam a serem emparedadas em sua própria casa. Afeganistão, tão distante. Será? Como andam as meninas sem condições financeiras em nosso país?  No nosso semiárido, além do calor, elas lutam para irem à escola nos dias de seus ciclos; têm muitas faltas por não terem recurso para comprar absorventes.  Como às vezes conseguem ir? Utilizam objetos como tecidos ou até papelão. Como poderão, no futuro, lembrar dos seus autores preferidos se não possuem o básico para estudar? Como poderíamos dizer que a elas é permitido o direito de ir e vir? Estariam também emparedadas? Uma lei de proteção sobre fornecimento de absorventes não consegue ser discutida no plenário da Câmara.  Medo da palavra menstruar, desse mistério de ser mulher ou puro machismo. Gatos pretos e mulheres caminham juntos na mesma sombra por esse planeta chamado Terra.


Ana Paula Mira, escritora. 

Instagram: @ana.paula.mira

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