Era um livro pequeno, preto, poucas letras douradas. O autor,
desconhecido para meus treze anos de vida. Edgar Alan Poe. Nunca esqueci um dos
contos: O gato. Eu não me importava em enfrentar o sol árido das tardes de Jequié
para buscar na vizinha de bairro os livros. O mistério arquitetado naquelas
páginas ganhou minha curiosidade. Aquele autor dialogava comigo. Revivi a
sensação dessa primeira leitura conversando com meu médico. O gato e sua
narrativa, os acontecimentos, o sufocamento do personagem, o destino do animal
e... da mulher. Naquela história eu defendia o felino. Seu encanto, seu
silêncio, seu mistério natural fora usado com maestria pelo escritor. Na idade
média, o Papa Gregório XI estabeleceu que os felinos eram companheiros de
bruxas, incluindo-os na lista de hereges. Depois de muitos serem exterminados
em fogueiras da Santa Inquisição, houve um pico na população de roedores,
trazendo a peste Negra. O quanto as lendas sobre os gatos pretos companheiros
de feiticeiras trazem para esse animal e a mulher um destino de sofrimento
nestes dias? Conspirações e histórias falsas não são prerrogativas de
nosso tempo. Na minha adolescência não percebia essas nuances sobre as
mitologias; o autor conversava comigo e isso bastava. Nesse agosto, mês
das superstições, caiu sobre nós um treze numa sexta-feira. Quando releio
esse conto, reflito. Gatos e mulheres. Na história de Edgar Allan Poe tanto o
gato quanto a mulher têm um destino onde partilham sofrimentos. As areias do
deserto nos trazem notícias, mulheres perdem o direito de ir e vir como no conto,
começam a serem emparedadas em sua própria casa. Afeganistão, tão distante.
Será? Como andam as meninas sem condições financeiras em nosso país?
No nosso semiárido, além do calor, elas lutam para irem à escola nos dias de
seus ciclos; têm muitas faltas por não terem recurso para comprar
absorventes. Como às vezes conseguem ir? Utilizam objetos como tecidos ou
até papelão. Como poderão, no futuro, lembrar dos seus autores preferidos se
não possuem o básico para estudar? Como poderíamos dizer que a elas é permitido
o direito de ir e vir? Estariam também emparedadas? Uma lei de proteção sobre
fornecimento de absorventes não consegue ser discutida no plenário da
Câmara. Medo da palavra menstruar, desse mistério de ser mulher ou
puro machismo. Gatos pretos e mulheres caminham juntos na mesma sombra por esse
planeta chamado Terra.
Ana Paula Mira, escritora.
Instagram: @ana.paula.mira
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